A ascensão da Inteligência Artificial para atacar a classe trabalhadora na justiça do trabalho

O uso de IA pelo capital para lutar na justiça contra a classe trabalhadora é realidade. Investimentos evidenciam a real face do capital, que deixa trabalhadores fadados a injustiças. Regulação, democratização e fortalecimento do acesso justo à justiça são essenciais para o futuro do trabalho.

A ascensão da Inteligência Artificial para atacar a classe trabalhadora na justiça do trabalho

O crescimento acelerado da judicialização trabalhista e o avanço tecnológico têm convergido para um cenário preocupante: enquanto o capital se arma com massivos investimentos em inteligência artificial (IA) para otimizar suas defesas jurídicas, os trabalhadores, por outro lado, são condenados uma vez mais a lutar uma batalha desigual.

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Ao invés de vermos empresas se preparando para aprimorar as condições de trabalho de seus funcionários, vemos as empresas se preparando para enfrentar um número colossal de ações judiciais.

Em 2024, segundo dados recentes, mais de 2 milhões de novas ações foram protocoladas na Justiça do Trabalho. Este número recorde — o maior desde a Reforma Trabalhista Temerária de 2017 — reflete, alarmantemente, a crescente tendência de judicialização das relações laborais. Analisando os fatores que contribuem para esse aumento, podemos perceber o indicativo claro do desprezo aos direitos das pessoas trabalhadoras:

  • Verbas rescisórias de direito do trabalhador: empregadores que, após a demissão, deixam de pagar aviso prévio, férias proporcionais e multa de 40% do FGTS (no caso de demitidos sem justa causa). O artigo 477 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) define que o pagamento das verbas rescisórias deve ser feito em até 10 dias úteis após a rescisão do contrato.
  • Omissão de pagamentos adicionais por direito: também há queixas de falta de pagamento de adicional por hora extra ou por insalubridade e de 13º salário. Há também muitas ações por falta de depósito mensal do FGTS pelo empregador.
  • Abuso no ambiente de trabalho: empresas que não proporcionam intervalo intrajornada (intervalo para descanso ou refeição). Outro tipo comum de ação é a que busca indenização por dano moral, como diferentes formas de assédio e constrangimento no ambiente de trabalho.

Diante desse cenário, ao invés de vermos empresas se preparando para aprimorar as condições de trabalho de seus funcionários, vemos as empresas se preparando para enfrentar um número colossal de ações judiciais. Pois sabem que, devido à contradição necessária entre capital e trabalho, a tendência é a de uma exploração mais predatória. Portanto, esperam ainda mais casos judiciais. Para minimizar os custos e os riscos financeiros desse contexto hostil, o capital se prepara investindo em soluções para manter, e aprofundar, o seu poder.

No centro dessa transformação no Brasil, recentemente tornou-se destaque uma startup (nova empresa de tecnologia, com potencial de crescimento excepcional) chamada Enter. A empresa chegou aos holofotes do universo capitalista por desenvolver um agente de IA capaz de atuar em defesas judiciais em favor das grandes corporações. Além disso, recentemente a empresa passou por mais uma rodada de investimentos. Apesar de não revelar a quantia exata da rodada, a Enter confirma já ter levantado um total de US$ 5,5 milhões, capital que hoje equivale a pouco mais de R$ 30 milhões.

Antes conhecida como Talisman, a Enter está utilizando a inteligência artificial para ajudar grandes empresas a se defenderem de processos contra consumidores e trabalhadores. A estratégia é clara: por meio de sistemas avançados, a inteligência artificial analisa ligações, identifica inconsistências e entrega defesas jurídicas formais, tudo com a promessa de aumentar a taxa de ganhos de causa em favor dos abastados capitalistas e contrários à classe trabalhadora.

É importante refletir criticamente sobre esse momento histórico atual, considerando a perspectiva ampla de sistema a que somos submetidos. No cenário capitalista, o investimento em IA, assim como qualquer investimento, não é orientado para resolver os problemas reais da população nem para aprimorar as condições de trabalho; trata-se, antes, de um mecanismo para unicamente preservar a lucratividade dos detentores dos meios de produção. Ao reduzir o impacto financeiro das ações judiciais, os capitalistas garantem a continuidade de seus lucros, mesmo que isso signifique que os trabalhadores não obtenham as compensações ou os direitos que lhes são devidos conforme a lei.

Esse tipo de investimento evidencia a clara priorização dos interesses do capital. Quando os recursos financeiros são direcionados para o aprimoramento das defesas jurídicas por meio da IA, observa-se que, ao mesmo tempo, os trabalhadores — com seu poder aquisitivo e capacidade de mobilização historicamente inferiores — permanecem sem os mesmos mecanismos tecnológicos ou estratégicos para se protegerem.

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Essa realidade reforça que os investimentos em IA não promovem uma justiça equilibrada, mas aprofundam o desequilíbrio de forças entre empregadores e empregados.

A disparidade entre a tecnologia investida e os recursos ao alcance dos trabalhadores escancara um conflito de classes extremamente desbalanceado. Enquanto os capitalistas podem dispor dos melhores sistemas e recursos praticamente infinitos para se protegerem juridicamente (forçar ainda mais a justiça burguesa a atender suas vontades), os trabalhadores não possuem a mesma força para enfrentar esses ataques. Essa assimetria reforça a desigualdade social inerente ao acúmulo de capital, transformando a justiça em um campo de batalha onde o capitalista luta em território amigo, tem as armas mais avançadas e no qual a classe trabalhadora se torna ainda mais vulnerável e, em muitos casos, sem alternativas.

Na prática, o uso de soluções de IA para armar a defesa das grandes corporações na justiça configura uma recente guinada no jogo que fortalece ainda mais o lado do capital na arena judicial. As ferramentas tecnológicas permitem identificar inconsistências e montar defesas precisas, aumentando consideravelmente as chances de sucesso das empresas. Isso se traduz diretamente em resultados desfavoráveis para a classe trabalhadora por meio de artifícios que beiram o absurdo judicial. Por exemplo, os agentes de IA conseguem analisar horas e horas de atendimento telefônico, ou fazer o cruzamento de fontes inimagináveis de dados, atrás de pequenos deslizes ou inconsistências em desfavor da parte mais fragilizada do processo.

Ao fortalecer a análise jurídica com tecnologia, automatizar o trabalho da defesa e utilizar agentes robotizados para análise massiva de dados, a IA transforma o ambiente judicial radicalmente. O campo do embate judicial se transforma em um ambiente onde o acesso à melhor tecnologia se torna sinônimo de vantagem competitiva. Muitas vezes em sinônimo de vitória. Por meio da utilização de brechas e artifícios que ignoram completamente a realidade material das relações trabalhistas. . Assim, os trabalhadores, que dependem de defensores públicos gratuitos ou de assessorias jurídicas de baixo custo, ficam fadados à derrota. Essa realidade reforça que os investimentos em IA não promovem uma justiça equilibrada, mas aprofundam o desequilíbrio de forças entre empregadores e empregados.

O uso da IA para reforçar defesas jurídicas acaba por criar um ambiente no qual os direitos trabalhistas serão ainda mais ameaçados. O investimento pesado em tecnologia para a proteção do capital traduz-se em medidas que buscam aumentar as decisões desfavoráveis à classe trabalhadora, afetando diretamente a capacidade dos trabalhadores de obter reparações justas por meio dos tribunais. Essa disparidade, reiteradamente evidenciada pelos números expressivos de ações na Justiça do Trabalho, revela a profundidade do conflito de classes e a necessidade urgente de intervenções que democratizem, antes do acesso à justiça, um acesso justo ao poder judicial.

Diante desse cenário, torna-se imperativo a discussão sobre a regulação do uso da IA no campo judicial. Se, por um lado, a tecnologia pode potencializar a eficiência e a eficácia das defesas jurídicas, por outro, seu emprego focado na proteção dos interesses das grandes corporações perpetua um conflito de classes perigosamente desproporcional. Sem mencionar os perigos embutidos nos algoritmos de inteligência artificial que podem aprofundar as desigualdades sociais.

Como sociedade, precisaremos passar a pensar como nos organizaremos com essas novas tecnologias. Estamos em um limiar histórico onde o avanço da técnica pode afetar os princípios sociais como nunca. Em especial, no campo judicial, dado a abrangência, contexto social e importância efetiva na vida das pessoas. Especialmente as mais necessitadas. Debates sobre princípios éticos e regulatórios precisam ser aprofundados. Algumas medidas podem ser consideradas:

  • Normatização do uso da IA no sistema judiciário: ainda que seja praticamente utópico pensar em uma atitude do Estado burguês nessas condições, a classe trabalhadora precisa passar a exigir uma resposta estatal na definição de padrões éticos e operacionais que assegurem que a utilização da IA não privilegie exclusivamente os recursos dos grandes capitalistas.
  • Democratização da tecnologia: as pessoas profissionais da área técnica precisam participar e serem incentivadas a trabalhar em projetos que utilizem a IA para fortalecer a defesa dos trabalhadores, como plataformas de apoio jurídico acessíveis e transparentes. A tecnologia, em especial a livre e de código aberto, pode contribuir para equilibrar o acesso aos recursos tecnológicos.
  • Fortalecimento da assessoria jurídica para os trabalhadores: já a classe trabalhadora da área jurídica precisa se organizar para se dedicar a serviços públicos e iniciativas que ofereçam suporte jurídico aos trabalhadores é essencial para reduzir a disparidade no campo de batalha entre capital e trabalho na justiça.

Fica claro, considerando que vivemos em um Estado capitalista burguês, que além das medidas institucionais, é necessária uma mobilização social que evidencie as desigualdades geradas pelo uso desproporcional da tecnologia nos litígios trabalhistas. Campanhas de conscientização que expliquem como o investimento em IA favorece os interesses do capital podem incentivar a demanda por políticas mais justas e inclusivas.

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Essa disparidade, reiteradamente evidenciada pelos números expressivos de ações na Justiça do Trabalho, revela a profundidade do conflito de classes e a necessidade urgente de intervenções que democratizem, antes do acesso à justiça, um acesso justo ao poder judicial.

O uso de inteligência artificial na defesa jurídica das grandes corporações revela um aspecto preocupante do atual sistema capitalista: a transformação da justiça em um campo onde somente aqueles com acesso a recursos tecnológicos avançados conseguem se proteger. A recente rodada de investimentos na startup Enter demonstra, de maneira inequívoca, que para atacar a classe trabalhadora e proteger o capital sempre há recursos disponíveis.

Ao investir massivamente em tecnologia, as empresas se armam com defesas automatizadas e sofisticadas, ampliando a disparidade entre empregadores e empregados. O perfil dos idealizadores dessas inovações, marcado por uma formação de elite e experiências internacionais, enfatiza ainda mais o desequilíbrio que permeia o sistema judiciário: enquanto o capital se beneficia de ferramentas avançadas, os trabalhadores permanecem vulneráveis, sem acesso a mecanismos comparáveis para garantir seus direitos.

A transformação desse cenário passa por uma intervenção coordenada: a regulação do uso da IA, a democratização da tecnologia e a mobilização social são pilares essenciais para promover uma justiça verdadeiramente equitativa. Somente com medidas que priorizem a equidade e que tornem a tecnologia acessível a todos será possível romper com o ciclo do desequilíbrio de classes e construir um futuro onde a inovação sirva como instrumento de emancipação e não de exclusão.