Algoritmos e desigualdade: Como a IA pode aprofundar as diferenças sociais

A inteligência artificial, apesar de supostos avanços, reforça desigualdades sociais e econômicas devido ao viés algorítmico, que discrimina com base em dados enviesados. É crucial repensar sua construção, melhorar a regulação e garantir uma IA ética.

Algoritmos e desigualdade: Como a IA pode aprofundar as diferenças sociais

A inteligência artificial (IA) tem sido uma das tecnologias mais disruptivas do mercado global. Com promessas de transformação em setores como saúde, educação, economia e segurança, ela é frequentemente retratada como uma ferramenta capaz de resolver problemas complexos e criar um futuro mais igualitário. No entanto, à medida que a IA se torna uma presença cada vez mais constante em nossas vidas, surge uma questão essencial: será que essa tecnologia realmente contribui para a construção de um futuro mais justo? Ou ela, na realidade, reforça as desigualdades que já existem nas sociedades contemporâneas? Neste artigo, discutiremos como a IA, longe de ser uma força democratizante, pode ser um elemento de perpetuação das desigualdades, devido ao viés algorítmico presente em muitos de seus sistemas.

Antes de mais nada, é fundamental entender o que é o viés algorítmico. Em termos simples, o viés algorítmico ocorre quando os sistemas de inteligência artificial, treinados com dados históricos, reproduzem ou amplificam padrões de discriminação presentes nesses dados. Isso significa que, ao aprender com informações de uma sociedade onde já existem desigualdades de gênero, raça, classe social e outras, a IA tende a adotar essas mesmas desigualdades em suas decisões. Seja em processos de seleção de candidatos para uma vaga de emprego, na distribuição de crédito bancário, na concessão de empréstimos ou até mesmo em sistemas de justiça criminal.

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Um pequeno número de empresas de tecnologia. Gigantes como OpenAI, Google e Facebook estão na vanguarda do desenvolvimento de IA e detêm um controle crescente sobre os dados que alimentam esses sistemas.

Essa questão não é nova. A inteligência artificial é treinada com dados coletados de uma sociedade que, historicamente, já é marcada por profundas desigualdades. Por exemplo, sistemas de reconhecimento facial podem ser mais precisos em identificar pessoas brancas do que pessoas negras, por serem alimentados por bancos de dados predominantemente compostos por imagens de indivíduos brancos. Da mesma forma, algoritmos usados em processos seletivos podem discriminar mulheres ou pessoas negras, simplesmente porque os dados históricos de emprego refletem as desigualdades existentes no mercado de trabalho.

O viés algorítmico é uma das maiores ameaças à ideia de que a IA pode contribuir para a igualdade de oportunidades. Em vez de corrigir distorções históricas, a IA tende a reproduzi-las, ou até mesmo ampliá-las.

Um dos exemplos mais flagrantes de viés algorítmico pode ser observado na questão de gênero e raça. Em várias áreas, como recrutamento de funcionários, concessão de crédito e até mesmo em sistemas de monitoramento policial, a IA tem demonstrado tendências discriminatórias que favorecem os grupos dominantes e marginalizam aqueles que já enfrentam barreiras sociais.

Em processos seletivos, por exemplo, muitas empresas utilizam sistemas de IA para filtrar currículos e selecionar candidatos. No entanto, esses sistemas tendem a ser programados para dar preferência a candidatos com características que mais se aproximam de um perfil masculino e branco, excluindo mulheres, negros e outras minorias. Isso ocorre porque os algoritmos são alimentados por dados históricos, que refletem o viés estrutural do mercado de trabalho, onde as oportunidades sempre foram concentradas em grupos mais privilegiados.

Além disso, a IA também é usada para analisar e predizer comportamentos de crédito. Em muitos casos, os algoritmos de IA têm maior probabilidade de negar crédito a pessoas negras e de classes sociais mais baixas, porque seus dados históricos refletem um padrão de exclusão e desigualdade econômica. Esses algoritmos, ao aprenderem com esses dados, acabam por reproduzir e perpetuar a discriminação racial e social.

Outro exemplo de viés algorítmico ocorre nos sistemas de reconhecimento facial. Em vários estudos, foi comprovado que os sistemas de IA tendem a ser mais precisos em identificar pessoas brancas do que pessoas negras. Isso ocorre porque, ao serem treinados com bancos de dados compostos principalmente por rostos de pessoas brancas, os algoritmos não conseguem reconhecer com precisão rostos de pessoas de outras etnias. Essa falha pode ter consequências graves, como falsas acusações e prisões injustas, principalmente para as populações mais vulneráveis.

Embora a IA tenha o potencial de melhorar a eficiência de muitos setores, incluindo a educação e o mercado de trabalho, ela também apresenta sérios riscos de reforçar as desigualdades existentes nesses campos.

No setor educacional, por exemplo, algoritmos de IA estão sendo usados para personalizar o aprendizado e fornecer recomendações de cursos ou caminhos acadêmicos. No entanto, a maneira como esses sistemas são alimentados pode resultar em discriminação. Se um sistema de IA for treinado com dados de estudantes de escolas privadas de elite, ele pode acabar recomendando caminhos acadêmicos que favorecem a formação de um pequeno grupo privilegiado, enquanto negligencia as necessidades dos estudantes de escolas públicas ou de regiões mais pobres.

No mercado de trabalho, a IA pode contribuir para a automação de várias funções, o que, em princípio, poderia aumentar a produtividade. No entanto, isso também levanta questões sobre a substituição de empregos de pessoas de classes mais baixas, as quais são as mais dependentes de postos de trabalho mais simples e automatizáveis. O avanço da IA pode criar um cenário no qual a automação elimina empregos de pessoas mais vulneráveis, enquanto os benefícios da tecnologia se concentram nas mãos de um número reduzido de grandes corporações e seus investidores.

Além disso, a introdução de tecnologias de IA no mercado de trabalho pode aumentar a desigualdade salarial. Trabalhadores qualificados em IA e em outras áreas tecnológicas têm a chance de obter altos salários, enquanto aqueles com pouca formação ou habilidades em tecnologia podem ver suas oportunidades de trabalho diminuírem, ampliando a disparidade salarial entre diferentes grupos da sociedade.

Outro ponto relevante é a concentração de poder nas mãos de um pequeno número de empresas de tecnologia. Gigantes como Google, Facebook, Amazon e Microsoft estão na vanguarda do desenvolvimento de IA e detêm um controle crescente sobre os dados que alimentam esses sistemas. Isso cria um cenário no qual as grandes corporações não só dominam o mercado de IA, mas também controlam as informações pessoais de bilhões de pessoas.

Esse domínio de dados e de tecnologia por um número reduzido de empresas tem implicações significativas para a sociedade. Além de aumentar o risco de abusos de poder e manipulação, ele enfraquece a capacidade dos governos e das instituições democráticas de regular a tecnologia e garantir que ela seja utilizada de maneira ética e justa. O mercado de IA está se tornando cada vez mais concentrado, o que pode reduzir a diversidade de perspectivas e práticas tecnológicas, tornando os sistemas de IA ainda mais suscetíveis a vieses e falhas.

A regulação da IA, portanto, se torna uma questão central. Embora existam esforços para criar marcos regulatórios, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira, a verdade é que as leis continuam distantes de garantir que a IA seja usada justamente. Sem uma regulação efetiva, é provável que as desigualdades se intensifiquem, já que as empresas continuarão a priorizar o lucro em detrimento do bem-estar social.

Apesar dos riscos e desafios apresentados pela IA, maneiras de mitigar seus impactos negativos vêm sendo experimentadas. Em primeiro lugar, é essencial que os dados usados para treinar algoritmos sejam mais diversos e representativos de diferentes grupos sociais, raciais e econômicos. Isso significa garantir que as populações marginalizadas sejam adequadamente representadas nos dados coletados, para que seus interesses sejam considerados ao desenvolver soluções baseadas em IA.

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Pesquisadora afirma, em entrevista ao Brasil De Fato, que a Inteligência Artificial não solucionará nossos problemas enquanto sociedade.

Além disso, é fundamental que a regulação da IA seja mais rigorosa. Os governos devem criar leis que protejam os direitos dos cidadãos e garantam que os sistemas de IA sejam transparentes, auditáveis e responsáveis. A criação de comissões de ética e a implementação de sistemas de fiscalização também são passos importantes para assegurar que os sistemas de IA não sejam usados para perpetuar ou aumentar as desigualdades.

Por fim, é importante que os desenvolvedores de IA, as empresas de tecnologia e os governos estejam cientes dos potenciais danos que a tecnologia pode causar. O design de sistemas de IA deve ser feito com um compromisso ético claro, focado na promoção da igualdade de oportunidades e na redução das desigualdades sociais, econômicas e políticas. A IA não deve ser vista como uma solução mágica para os problemas da sociedade, mas como uma ferramenta que, se bem utilizada, pode ajudar a construir um futuro mais justo para todos.

A inteligência artificial tem o potencial de transformar profundamente a sociedade, mas apresenta sérios riscos. O viés algorítmico, ao reproduzir e amplificar as desigualdades históricas, está contribuindo para a perpetuação de discriminações e desigualdades em várias áreas, como no mercado de trabalho, na educação e na justiça. A concentração de poder nas mãos de algumas poucas empresas de tecnologia só agrava essa situação, tornando a IA uma ferramenta de reforço das estruturas de poder já existentes.

É urgente que governos, empresas e desenvolvedores de tecnologia assumam a responsabilidade de criar sistemas de IA que sejam éticos, transparentes e que contribuam para a redução das desigualdades, e não para o seu aumento. Caso contrário, a IA poderá se tornar mais uma ferramenta de controle social, perpetuando as divisões que marcam nossas sociedades.