Neutralidade da rede sob ataque: O papel do Estado na consolidação de monopólios digitais

O Marco Civil é ignorado, ao privilegiar gigantes como a Meta, Google e TikTok. Com apoio de MCTIC e Anatel, essa prática reforça monopólios digitais, exclui aplicativos menores e perpetua desigualdades, prejudicando a sociedade e a inclusão digital no Brasil.

Neutralidade da rede sob ataque: O papel do Estado na consolidação de monopólios digitais

Em 23 de abril de 2014, o Brasil sancionou o Marco Civil da Internet, uma legislação pioneira que estabeleceu as bases para o uso da internet no país. O contexto histórico de sua criação surgiu em meio ao crescente impacto da rede mundial de computadores na sociedade, impulsionado pelo aumento do acesso à internet e pela necessidade de regulamentar um ambiente digital cada vez mais relevante para a economia, a política e a vida cotidiana. A ideia era equilibrar a liberdade de expressão, a proteção dos direitos dos usuários e a responsabilidade das empresas de telecomunicações e provedores de serviços online.

O Marco Civil da Internet, oficialmente conhecido como Lei n.º 12.965/2014, tornou-se um marco jurídico fundamental ao estabelecer direitos e deveres tanto para usuários quanto para empresas e o poder público no ambiente digital. Entre os principais pontos da lei, destaca-se a neutralidade da rede, que garante a igualdade no tratamento dos dados, sem discriminação ou priorização de pacotes de internet; a proteção da privacidade e dos dados pessoais dos internautas; e a obrigatoriedade de armazenamento de registros de conexão por no máximo seis meses. Além disso, o Marco Civil reforça a liberdade de expressão online e a necessidade de assegurar a não censura na internet. Sua importância vai além da legislação nacional, por posicionar o Brasil como um dos primeiros países a estabelecer uma regulação clara e equilibrada para a internet, com impacto direto na maneira como o mundo discute direitos digitais.

Um dos pilares do Marco Civil da Internet é a neutralidade da rede, princípio que estabelece que os provedores de internet devem tratar de forma igualitária todo o tráfego de dados na rede, sem discriminar, priorizar ou bloquear o acesso a conteúdos, sites ou serviços. Isso significa que os usuários têm liberdade para acessar qualquer conteúdo online, sem que haja interferência por parte dos provedores, como a limitação de velocidade ou a criação de pacotes de internet diferenciados que favoreçam determinados serviços. A neutralidade da rede é crucial para garantir um ambiente digital democrático e aberto, permitindo que qualquer pessoa ou empresa tenha igual oportunidade de se expressar, inovar e competir na internet. Em sua essência, ela impede que provedores de serviços online abusem de seu poder econômico ou de infraestrutura para criar barreiras ou privilégios para determinados conteúdos, garantindo um fluxo de informação livre e sem restrições.

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Práticas e políticas que comprometam o princípio da neutralidade da rede ferem efetivamente a liberdade do usuário em escolher quais conteúdos consumir e quais provedores de aplicativos e soluções eventualmente utilizar

Porém, práticas como o zero rating geram um debate acalorado sobre a eficácia da neutralidade da rede. O zero rating é uma prática adotada por alguns provedores de internet, onde certos serviços ou aplicativos são oferecidos aos usuários sem que consumam a franquia de dados contratada, ou seja, são "gratuitos" no sentido de não impactarem o pacote de dados do usuário. Embora pareça uma solução vantajosa para a inclusão digital, uma vez que possibilita o acesso a serviços essenciais sem custos adicionais, o zero rating pode violar a neutralidade da rede ao criar um acesso desigual à internet. Isso ocorre porque, ao isentar alguns serviços de consumo de dados, o provedor de internet incentiva o uso exclusivo de plataformas ou aplicativos específicos, muitas vezes favorecendo grandes empresas ou serviços pagos. Esse tipo de prática pode levar à limitação da liberdade do usuário em escolher quais conteúdos consumir, ao mesmo tempo em que diminui a competitividade no mercado digital, favorecendo um pequeno número de players.

Os riscos sociais do não respeito à neutralidade da rede ou da adoção de práticas como o zero rating são significativos. Quando a neutralidade é comprometida, o acesso à informação pode se tornar fragmentado, criando barreiras entre diferentes grupos sociais. Usuários com menos poder aquisitivo podem ser limitados a um acesso restrito a certos serviços, enquanto os mais ricos, com pacotes de dados mais completos, têm liberdade para navegar por uma internet mais ampla e sem restrições. Além disso, empresas menores, que não podem pagar para ser incluídas em pacotes zero rating ou que não têm a capacidade de negociar com provedores, podem ser marginalizadas, dificultando sua visibilidade e competitividade. Esse cenário pode agravar ainda mais as desigualdades sociais e econômicas, já que o acesso à informação e à inovação se tornaria desigual, prejudicando principalmente as camadas mais vulneráveis da população. O respeito à neutralidade da rede, portanto, é essencial para garantir que a internet continue sendo um espaço de igualdade, liberdade e inclusão digital para todos.

Apesar do Marco Civil de 2014 ter boas intenções sobre a característica isonômica no tratamento dos pacotes de dados na Internet, a realidade foi distorcida em uma Nota Técnica do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em 2017 (Nota Técnica n.º 34/2017). A presente nota foi redigida após representação do Ministério Público Federal contra as operadoras de Internet atuando no Brasil.

Conforme a nota, o zero rating pode assumir diferentes formas, como tarifas zero definidas pela operadora ou acessos patrocinados, em que os custos do tráfego são arcados pelo provedor de conteúdo. Embora a prática seja frequentemente interpretada como uma violação da neutralidade de rede, a análise do CADE aponta que a legislação brasileira, incluindo o Decreto nº 8.771/2016 que regulamenta o Marco Civil, não proíbe expressamente o zero rating. O texto sugere que a proibição do princípio está mais relacionada à priorização técnica de pacotes de dados – como nas chamadas fast lanes – e não à diferenciação comercial ou ao subsídio de acessos.

A posição do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC, comandado à época por Gilberto Kassab) na nota do CADE contrasta com a letra da lei do Marco Civil ao minimizar os impactos do zero rating. Apesar de o artigo 9º do Marco Civil determinar o tratamento isonômico de pacotes de dados e vedar discriminações comerciais, o MCTIC argumenta que o zero rating não constitui uma violação a priori. O órgão interpreta que a neutralidade de rede trata apenas de questões técnicas de tráfego e não de arranjos comerciais, ignorando que o artigo também proíbe bloqueios e priorizações resultantes de acordos financeiros, como ocorre nos modelos de zero rating. Essa interpretação flexibilizada desvia da intenção original do legislador, que buscava evitar distorções na concorrência e prejuízos ao consumidor.

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Em posicionamento no CADE, o MCTIC diz que segundo em estudo comparativo internacional, verifica-se que não há um tratamento uniforme por parte das autoridades regulatórias. Oras, e de que vale então, para o MCTIC, o que diz a própria Lei Brasileira? Nada?

Já a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) adota uma postura igualmente permissiva as corporações em detrimento da sociedade, contrariando o espírito do Marco Civil. A agência considera o zero rating uma prática que não ameaça a neutralidade de rede nem a concorrência, destacando possíveis benefícios ao consumidor e incentivando a inovação. Tal abordagem ignora que essas práticas favorecem determinados serviços em detrimento de outros, criando barreiras à isonomia no acesso à Internet. Essa leitura da Anatel flexibiliza perigosamente um princípio central do Marco Civil e desconsidera os riscos de concentração de mercado e exclusão digital.

Ao adotarem uma interpretação permissiva do zero rating, tanto o MCTIC quanto a Anatel, conforme apresentado na Nota Técnica do CADE, acabam assumindo um papel de proteção aos interesses das operadoras de Internet em detrimento das necessidades da sociedade brasileira. Ao minimizar os impactos anticompetitivos e ignorar as implicações do zero rating na neutralidade de rede, essas instituições priorizam a flexibilização de regras que beneficiam modelos comerciais das prestadoras, mesmo quando tais práticas violam a isonomia no acesso à Internet prevista no Marco Civil. Essa postura enfraquece o compromisso com a democratização da rede, essencial em um país marcado por desigualdades no acesso à informação, e ignora os riscos de exclusão digital e concentração de mercado. Em vez de defenderem os direitos dos usuários e promoverem a inclusão digital, as instituições parecem operar como aliadas das grandes operadoras, reforçando estruturas de poder que perpetuam desequilíbrios no uso e acesso à Internet no Brasil.

A Nota Técnica do CADE e a representação do Ministério Público Federal (MPF) direcionam quase toda a responsabilidade às operadoras de telecomunicações, deixando as grandes corporações de Internet praticamente isentas de escrutínio. Essa abordagem desconsidera como o zero rating privilegia economicamente empresas como a Meta, detentora de aplicativos amplamente beneficiados por essas práticas – WhatsApp, Facebook e Instagram –, em detrimento de concorrentes menores ou novos entrantes no mercado digital.

Embora o MPF tenha apontado as operadoras como as principais responsáveis pelas distorções concorrenciais, a nota não explora suficientemente o papel das grandes plataformas que se beneficiam dessas práticas. Ao permitirem que suas aplicações sejam oferecidas sem custos de dados aos consumidores, empresas como a Meta consolidam ainda mais seu domínio de mercado, reduzindo as oportunidades para aplicativos menores que dependem de um acesso igualitário à Internet para competir. Essa omissão desvia o foco de como essas gigantes colaboram ativamente com as operadoras para perpetuar um modelo de mercado que beneficia ambas, mas prejudica consumidores e pequenos inovadores.

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As decisões e pareceres do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e da ANATEL, conforme apresentados na nota do CADE, revelam como as instituições de Estado protegem os interesses das operadoras de Internet e grandes corporações. Esse posicionamento acaba prejudicando as necessidades da sociedade brasileira.

A ausência de uma análise profunda sobre as consequências do zero rating para o ecossistema de aplicativos evidencia uma proteção implícita às grandes corporações digitais. Em vez de considerar o impacto estrutural desse modelo, tanto o CADE quanto o MPF se limitam a discutir o comportamento das operadoras, ignorando como a parceria com gigantes da tecnologia, como a Meta, desestimula a inovação. Aplicativos e serviços menores, que não possuem recursos para negociar acordos de zero rating, são colocados em desvantagem competitiva, criando barreiras artificiais que perpetuam o oligopólio das gigantes.

Essa isenção de responsabilidade às corporações digitais também revela uma visão limitada das implicações econômicas do zero rating. Embora a prática seja frequentemente apresentada como um benefício ao consumidor, permitindo acesso gratuito a determinados serviços, ela contribui para reforçar a dependência da população a poucos aplicativos dominantes, reduzindo a diversidade e a liberdade de escolha na Internet. O resultado é um ambiente digital cada vez mais centralizado, no qual tanto as operadoras quanto as grandes plataformas lucram, enquanto os usuários e a sociedade como um todo enfrentam os custos invisíveis da exclusão digital e da falta de concorrência real.

Desde a sanção do Marco Civil da Internet, o Brasil estabeleceu uma legislação pioneira para assegurar um ambiente digital mais democrático, com a neutralidade da rede como um de seus pilares. Contudo, práticas como o zero rating, amplamente adotadas e protegidas por interpretações flexibilizadas de órgãos como o MCTIC e a Anatel, comprometem diariamente os princípios da lei. Essas instituições, ao minimizarem os impactos dessas práticas, deixam de cumprir seu papel de defesa dos interesses sociais e nacionais, posicionando-se como protetoras das operadoras de telecomunicações e facilitadoras das grandes corporações de Internet, muitas delas estrangeiras.

Empresas como a Meta, Google e recentemente TikTok, emergem como as principais beneficiárias do zero rating. Ao permitirem acesso gratuito a seus serviços, essas corporações consolidam ainda mais seu domínio no mercado, em detrimento da diversidade digital. Enquanto isso, o Marco Civil, que deveria garantir tratamento isonômico e impedir discriminações econômicas, é sistematicamente ignorado, aprofundando desigualdades no acesso à informação e na competição justa no ambiente digital.

Ao desconsiderarem o impacto estrutural do zero rating, MCTIC e Anatel reforçam a concentração de poder das gigantes da tecnologia. A proteção implícita a essas corporações estrangeiras em detrimento da inclusão digital da população brasileira e da inovação local evidencia uma inversão de prioridades. Em vez de promoverem um ambiente competitivo que beneficie toda a sociedade, esses órgãos acabam fortalecendo um modelo que restringe a liberdade dos usuários e agrava a exclusão digital.

É urgente que continuemos relembrando ao Estado brasileiro, por meio de seus órgãos reguladores, que retome o compromisso original do Marco Civil, garantindo um tratamento igualitário na rede e priorizando os interesses da sociedade. A continuidade do modelo atual, em conjunto com práticas mercadológicas cada vez mais abusivas, coloca em risco o futuro da Internet como um espaço de inovação, inclusão e diversidade, perpetuando a dependência de poucas corporações internacionais e desconsiderando os valores que fundamentaram a criação da legislação brasileira.