O setor tecnológico intensifica desigualdades e explora trabalhadores, apesar dos altos salários. A ilusão de uma classe privilegiada é desafiada pelas demissões em massa. Para a tecnologia beneficiar a todos, é urgente a organização coletiva dos trabalhadores, garantindo seu uso para o bem comum.
Há décadas observamos o mundo digital se expandir, com suas promessas sedutoras e contradições intrincadas. Testemunhamos a consolidação do computador, antes uma máquina complexa de laboratório, em um portal onipresente, integrado a cada aspecto de nossas vidas. Vimos a ascensão meteórica de impérios empresariais construídos sobre a transformação de dados em lucros exorbitantes, alimentando uma crença quase religiosa no poder redentor da tecnologia, propagandeada como solução mágica para todos os problemas sociais. No entanto, por trás do brilho das interfaces e da sofisticação dos algoritmos, esconde-se uma verdade incômoda que precisa ser muito mais revelada: o mundo paralelo da tecnologia não está imune às contradições e às lutas de classes que permeiam toda a sociedade capitalista. Longe de ser um espaço neutro de inovação e progresso, o setor tecnológico reproduz e intensifica as desigualdades e as relações de exploração características desse sistema.
O setor tecnológico se nutriu, desde o princípio, de uma combinação perigosa de individualismo exacerbado, neoliberalismo econômico e uma crença praticamente messiânica no progresso tecnológico como panaceia universal. Prega-se a meritocracia individual como motor do sucesso, ignorando as condições materiais desiguais que moldam as oportunidades de cada pessoa. Exalta-se a livre concorrência e o mercado desregulado como únicos caminhos para o desenvolvimento, negligenciando os impactos sociais e ambientais da busca incessante por lucro. Vende-se a ilusão de que a tecnologia, por si só, consegue resolver todos os problemas da humanidade, desviando o foco das questões estruturais que perpetuam a desigualdade e a injustiça. A ênfase na disrupção e na inovação a qualquer custo ignora frequentemente as consequências sociais e aprofunda as disparidades econômicas, criando um ambiente onde a tecnologia se torna um instrumento de concentração de renda e poder, em vez de um meio para o bem comum.
A história continua, e continuará por algum tempo, favorável aos trabalhadores da tecnologia. A escassez de profissionais qualificados, as demandas técnicas complexas e, principalmente, a especulação financeira desenfreada - agora impulsionada pela febre da Inteligência Artificial - mantêm os salários inflacionados e concedem privilégios historicamente inacessíveis a outros trabalhadores. Ambientes de trabalho descolados, horários flexíveis e benefícios atraentes criam uma nova “classe privilegiada”. No entanto, essa aparente prosperidade continua a mascarar uma realidade muito mais dura: a luta de classes, inerente ao sistema capitalista, não desapareceu magicamente nos escritórios de startups ou das sedes reluzentes das multinacionais de tecnologia. Ela apenas se manifesta de maneiras diferentes, mais sutis, mas não menos reais. A ascensão social proporcionada pelos altos salários não elimina a condição fundamental do trabalhador no capitalismo: a de vendedor unicamente de sua força de trabalho em troca de um salário, sujeito às flutuações do mercado e à exploração do capital.
A análise dos dados revela uma contradição fundamental: enquanto uma minoria ínfima acumula fortunas inimagináveis, concentrando a riqueza gerada pela inovação tecnológica, a vasta maioria dos trabalhadores da tecnologia permanece assalariada, vendendo seu tempo e suas habilidades em troca de uma remuneração, ainda que elevada, e sujeita aos caprichos do mercado. A narrativa de pertencimento a uma “elite” ou “classe privilegiada” tolda frequentemente a percepção da exploração que sofrem, dificultando a consciência de classe e a organização coletiva. No contexto brasileiro, essa fragilidade se manifesta, entre outras formas, no esvaziamento e no enfraquecimento das entidades sindicais de tecnologia. O debate sobre a importância dos sindicatos e da organização dos trabalhadores se transforma em um tabu, especialmente quando comparamos a situação brasileira com outros polos tecnológicos, onde a cultura individualista e a pressão por alto desempenho dificultam a formação de laços de solidariedade e ação conjunta.
A recente onda de demissões em massa que assolou o setor tecnológico expôs a fragilidade dessa suposta bonança. Um reflexo da realidade no mundo dos sonhos tecnológicos. A pretexto de uma reavaliação de investimentos no cenário pós-pandêmico, empresas de tecnologia de todos os portes demitiram milhares de funcionários, demonstrando a face fria e calculista do capitalismo. Trabalhadores que antes eram cortejados como “talentos excepcionais” e considerados “essenciais” foram descartados como peças obsoletas, revelando sua verdadeira condição: a de meros instrumentos na busca incessante por lucro. Essa situação demonstra a necessidade urgente de organização da classe trabalhadora. Somente através da união e da ação coletiva, os trabalhadores podem defender seus direitos e influenciar o rumo da inovação tecnológica. A organização social e outras formas de mobilização são ferramentas essenciais para contrapor o poder do capital e garantir que os avanços tecnológicos beneficiem a todos, e não apenas a uma minoria.
A importância estratégica da tecnologia para a sociedade contemporânea, e futura, é inegável. A infraestrutura digital, os softwares, os aplicativos e as plataformas criados pelos trabalhadores da tecnologia permeiam todos os aspectos de nossas vidas: da comunicação ao transporte, da saúde à educação, do lazer à produção. O controle e o direcionamento dessa tecnologia, portanto, constituem questões cruciais para o futuro da humanidade. A organização da classe trabalhadora é fundamental para garantir que a tecnologia seja utilizada para o bem comum, e não apenas para o acúmulo de capital por uma minoria. A participação ativa e organizada dos trabalhadores nas decisões sobre o desenvolvimento e a aplicação da tecnologia pode garantir que ela sirva para reduzir as desigualdades sociais, promover o desenvolvimento sustentável e melhorar a qualidade de vida dos próprios trabalhadores responsáveis pela produção tecnológica.
É precisamente por essa razão que o setor de tecnologia necessita urgentemente de uma nova perspectiva, um novo olhar que transcenda a narrativa individualista e mercantil que o domina. Uma nova lente que reconheça a luta de classes como o motor da história e que defenda a organização coletiva dos trabalhadores como o principal instrumento de transformação social. Precisamos compreender que a tecnologia não é neutra, mas sim um produto das relações sociais de produção, e que o seu desenvolvimento e utilização são condicionados pelos interesses da classe dominante. Somente através da organização e da luta coletiva os trabalhadores da tecnologia poderão conquistar melhores condições de trabalho, influenciar o rumo da inovação tecnológica e construir uma sociedade mais justa e igualitária.
Uma nova voz surge da necessidade de construir essa nova perspectiva. Não nos contentaremos em reproduzir as narrativas hegemônicas do mercado. Buscaremos a análise crítica, o debate aberto e a denúncia das injustiças. Ouviremos os trabalhadores, suas lutas e suas aspirações. Almejamos ser um espaço de reflexão e organização, um instrumento para a construção de um futuro onde a tecnologia esteja a serviço da humanidade, e não da acumulação desenfreada de capital por uma minoria privilegiada. Queremos escutar e propagar a voz daqueles que constroem, com seu suor e seu intelecto, o mundo digital. Mas que frequentemente são silenciados e explorados.
Este é o nosso compromisso inabalável.
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